O mal que vem para o bem do teatro
Thiago Sampaio, um dos diretores de Mal, fala sobre o espetáculo e sobre o teatro
Diogo Braz
Em cena desde 2002, a Cia do Chapéu vem se destacando a cada montagem como um grupo inventivo e versátil, agraciados com prêmios nacionais e participações em diversos projetos. Fruto de uma dessas premiações (Prêmio Myriam Muniz de Teatro, da Funarte), Mal, o mais novo espetáculo da companhia, estreou temporada este mês no Espaço Cultural Linda Mascarenhas, às sextas e sábados de julho, e vem arrancando aplausos e reflexões de um público que se acostumou a ver esses jovens artistas a percorrerem caminhos inusitados para chegarem a excelentes resultados. Em entrevista a este Blog, o ator Thiago Sampaio, um dos diretores do espetáculo (junto com Gustavo Félix), fala sobre o processo de criação do espetáculo e sobre teatro. Confiram a conversa e não deixem de assistir o trabalho desses talentosos "chapeleiros" em cena.
Como surgiu a vontade de trabalhar um texto sobre
solidão, morte, pensamentos intrusivos e transtornos de comportamento?
Como uma
bola de neve, sem sabermos ao certo que tocaríamos nessas questões. A proposta
inicial foi a de falarmos sobre o mal, assim bem genérico, bem amplo. Logo em
seguida, diante da necessidade de localizar, de demarcar esse “mal”, chegamos à
depressão, uma doença que nos assombra há muito tempo, embora as descobertas
sobre ela sejam bem recentes e que até 2030 será a doença mais comum do mundo,
segundo pesquisa da Organização Mundial de Saúde. Foi a partir do universo da
depressão (algo ainda bem amplo) que nos vimos tocando em todas essas outras
questões; o assunto principal se ramificou e ganhou outros contornos,
tornando-se inclusive secundário no processo.
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O ator e diretor Thiago Sampaio - Foto de acervo do artista |
O processo de criação da peça se iniciou em 2010 como uma
proposta para três atores e hoje chega ao público como um solo do ator Rick
Galdino. Como foi esse processo e como vocês chegaram ao formato da peça?
É
difícil dizer com precisão quando esse processo se desdobrou em três. Em algum
momento percebemos que, mesmo contando com três atores num único trabalho, a
criação individual de cada um possuía um alto nível de autonomia em relação ao
todo e aí resolvemos correr o risco de desmembrar o trabalho em três, onde cada
ator passaria a desenvolver uma pesquisa independente, porém ainda ligada ao
mesmo eixo temático. Com Rick Galdino investimos numa configuração teatral, com
Joelle Malta nos vimos diante de um trabalho transitando entre uma instalação
coreográfica e uma performance, e quanto ao Donda Albuquerque enveredamos para
um vídeo arte.
No caso
do “Mal”, que é a peça em questão, trabalhamos basicamente com exercícios de
improvisação e com a construção de uma dramaturgia inspirada em histórias
particulares nossas. À medida que levantávamos certas memórias e situações
vividas na maioria das vezes por nós três (eu, Gustavo Félix e Rick Galdino),
tratávamos de complementá-las com informações ficcionais, ora misturando
elementos de histórias diferentes, ora distorcendo-as seja por alteração nos
texto ou nas ações.
Como se deu a escolha estética de encenar Mal numa estrutura
cenográfica que independe de palco (no Linda Mascarenhas, por exemplo, a peça
está sendo apresentada no Hall)?
Quando
iniciamos o processo, a Cia alugava uma casa bem ampla no centro da cidade e a
nossa pretensão era a de nos apresentar lá. Ou seja, a ideia desde o princípio
era a de levantar um trabalho para residências. Nos mudamos para uma outra
casa, um pouco menor e ainda assim continuamos com essa ideia. Foi nessa
segunda casa, já em 2012, que o espetáculo chegou na configuração apresentada
hoje, no sentido da distribuição do público ser lateral e não frontal. Quando
fechamos a estreia no Linda Mascarenhas já sabíamos que não seria no teatro e
sim no Hall, que apesar de amplo, possui limitações acústicas (carpete, altura,
entrada do som externo...). Isso nos obrigou a levantar a estrutura que cerca a
cena, para minimizar o confronto com a qualidade acústica do espaço e também
para garantir a proximidade com o público que sempre nos interessou.
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Rick Galdino em cena, sob o olhar atento do diretor - Foto de Diogo Braz |
Pode-se perceber que vocês trabalharam um ritmo para a
montagem que sugere um mergulho do espectador nesse universo solitário e
doentio do personagem. Qual a intenção principal de Mal, é contar uma história
ou proporcionar uma experiência? Como vocês avaliam, em Mal, a capacidade do
teatro de despertar sensações no público e fazer do espectador agente
participativo da construção dos sentidos do espetáculo?
Eu
acredito que o Mal corresponde às duas coisas simultaneamente (conta uma
história e proporciona uma experiência), sem privilegiar nenhuma delas. Quem
assiste ao espetáculo tanto acompanha a trajetória de vida de um personagem
quanto está vivendo uma experiência diferente da sua vida ordinária. É difícil
dizer das sensações do público, pois isso é de foro íntimo, e não é possível
ter certeza absoluta de que todos compreenderam o trabalho de uma mesma forma;
mas eu acredito que a simples presença da plateia, bem como de todos os
elementos ali dispostos, alteram o estado de ânimo do ator que por sua vez
também afeta a percepção de quem assiste. Nessa relação não há linearidade (eu
assisto e só depois eu sinto), nossa percepção é arbitrária e assim pode
acontecer de alguém assistir à peça e não reparar algo que uma outra pessoa que
assistiu ao seu lado no mesmo dia reparou. E isso certamente afeta a construção
do(s) sentido(s) do espetáculo para quem o assiste.
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Mergulho no universo de Mal - Foto de Diogo Braz |
Vocês estão na ativa há mais de uma década e já tiveram
diversas experiências de fazer teatro. Qual a importância prática deste
espetáculo ter sido selecionado no Prêmio Myriam Muniz?A cia sempre levantou seus trabalhos de forma autônoma, tirando do próprio bolso e rateando os lucros (quando havia) entre os participantes. Levantar espetáculos dessa forma, por mais arriscado e exaustivo que seja, nos ajudou a fortalecer nossos vínculos pessoais e sentimento de cooperação, além de desenvolver certas habilidades importantes para o ofício (confecção de cenário, figurino, sonoplastia e iluminação). Na ausência de recursos nos aventuramos e dividimos as tarefas por afinidade, nos revesando na produção, na cenografia, na direção, atuação e assim por diante. Quando ganhamos um prêmio dessa natureza, como aconteceu com o espetáculo “Graças” em 2010 (Prêmio Alagoas em Cena, da Secult e Caixa Econômica) e agora com o “Mal” (Funarte de Teatro Myriam Muniz 2012) não sentimos que o trabalho se tornou mais fácil ou mais leve, porém o realizamos com mais tranquilidade, porque sabemos que nossas ideias tem uma garantia maior de ganhar corpo. O espetáculo estrearia com ou sem prêmio, pois já vínhamos trabalhando nele há um tempo e já estava mais do que na hora dele avançar de estágio, saindo da sala de ensaio para o confronto com o público. O prêmio da Funarte veio justamente nesse momento, favorecendo essa mudança de status de maneira mais complexa, porque nos preocupamos não somente com o espetáculo em si, mas com a construção de espaços de reflexão sobre o fazer teatral, trazendo profissionais de outras localidades para ministrarem oficinas gratuitas, além de realizarmos ensaios abertos durante o processo de montagem, expondo nossas ideias para debate.
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Rick Galdino interage com a cenografia de Isaac Vale - Foto de Diogo Braz |
Para vocês, qual o principal mal do teatro alagoano?Seria ingênuo atribuir a um único fator a responsabilidade sobre um problema do teatro alagoano. Nós enfrentamos adversidades múltiplas, algumas se repetem e outras se revesam conforme o tipo de trabalho que se faz. A Cia do Chapéu tem sérias dificuldades de captar recursos, por exemplo, pois nossa habilidade com produção ainda é pouco desenvolvida, mas isso não é uma característica pertencente a todos os grupos e artistas locais. No entanto, todos nós sofremos com o limitado número de casas de espetáculos que Alagoas possui. E apesar de todas as dificuldades, o estado possui uma série de competentes artistas e sérios estudiosos, de pessoas que estão pensando e fazendo teatro e dança, além das outras linguagens artísticas. Acredito que há sempre o que se melhorar, se na qualidade técnica a responsabilidade é do artista, que deve estudar, se exercitar, assistir e consumir arte; se no contexto, a responsabilidade cabe aos dirigentes dos setores competentes, públicos e privados, oferecendo espaço, investimento financeiro, oportunidades de troca e intercâmbio com outros profissionais entre outras ações dessa natureza. É preciso manter viva toda e qualquer iniciativa que estimule a criação artística, de qualquer natureza, pois quando se interrompe um processo, como a distribuição de um prêmio ou a disponibilização de um espaço para ensaios e apresentação, vê-se crescer o número já alto de restrições com que se faz arte por aqui.
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Rick Galdino e Thiago Sampaio em ensaio aberto ao público - Foto de Diogo Braz |
Quais são os planos para a montagem depois desta temporada?
Pretendemos
realizar mais algumas apresentações até o fim desse segundo semestre, ainda com
data e local indefinidos. Como, após a temporada, o foco da Cia estará voltado
para o segundo trabalho do mesmo processo que gerou o “Mal”, no caso “Tarja
Preta”, com a atriz Joelle Malta sob direção de Donda Albuquerque; deixaremos
uma temporada do Mal numa proporção maior para 2014.
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